As cenas são chocantes. Rios
e igarapés secos e fumaça de queimada subindo pelo céu amazônico.
Manaus, capital do Amazonas
encravada no meio da floresta, ficou recentemente encoberta por uma nuvem
espessa de fumaça causada por queimadas no entorno da cidade.
A pouco mais de 500 quilômetros
dali, carcaças de botos espalhadas pelo leito seco de um lago no interior da
Amazônia assustam e preocupam moradores.
Cientistas, ambientalistas e
representantes do governo federal avaliam que esses dois eventos podem ter
relação com um fenômeno que vem preocupando a comunidade científica e os
milhões de habitantes da região: a estiagem severa que atinge a Amazônia,
especialmente a chamada Amazônia Ocidental, composta pelos Estados do Amazonas,
Rondônia, Acre e Roraima.
A expectativa é de que essa
seca possa ser a maior já registrada na região causando prejuízos ainda
imprevisíveis.
Na segunda-feira (16/10), a
medição do nível do Rio Negro em Manaus registrou o ponto mais baixo desde
1902: 13,59 metros. Com isso, a seca neste local bateu o recorde da estiagem de
2010, considerada, até então, a maior da história.
Em outros rios importantes
da região, como o Madeira, a vazante também já é a maior registrada.
O cenário inspira ainda mais
preocupação porque a previsão é de que a temporada seca demore mais tempo que o
habitual para acabar.
Mas o que estaria por trás
dessa seca tão severa que estaria por trás da morte de botos e ligada à fumaça
que cobriu Manaus nos últimos dias?
Causas
Secas e cheias são fenômenos
normais na Amazônia. A região é cortada por rios gigantescos e é ocupada, em
sua maior parte, pela floresta, que produz umidade em enormes quantidades e
libera na atmosfera.
Com tanta água envolvida,
por que a região está sendo afetada por uma estiagem tão severa? E quais os
seus efeitos mais diretos sobre a natureza e a população que vive na Amazônia?
Cientistas ouvidos pela BBC
News Brasil explicaram que a Amazônia tem um regime próprio de cheias e de
seca.
Geralmente, a estação
chuvosa vai de novembro a março, e a estação seca começa em abril e termina em
meados de outubro.
Eles contam que, neste ano,
a região está sendo afetada por dois fenômenos simultâneos que vêm contribuindo
para a intensidade da estiagem.
O primeiro deles é o El
Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico. Esse fenômeno natural, que está
ocorrendo de forma intensa, dificulta a formação de chuvas na Amazônia.
O El Niño teria, segundo os
cientistas, afetado a estação chuvosa na Amazônia deste ano, que registrou
índices pluviométricos abaixo da média. Com menos chuva, os rios entraram na
estação seca com volume menor que o normal.
O segundo fenômeno afetando
a Amazônia é o aquecimento anormal das águas do Oceano Atlântico, que também
reduz a quantidade de chuva na região.
O pesquisador e
meteorologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres
Naturais, Giovanni Dolif, diz que ainda não é possível atribuir a ocorrência
desses dois fenômenos às mudanças climáticas causadas pelo homem, mas a
estiagem registrada neste momento é compatível com os modelos projetados em que
há aumento da temperatura do planeta.
"Um único evento
atmosférico é uma amostra pequena pra gente atribuir a um fenômeno de escala
global, mas os estudos mostram que um planeta mais quente proporciona eventos
extremos seja de seca como de inundações", disse o pesquisador à BBC News
Brasil.
Dolif explica que as
perspectivas são preocupantes porque os dados indicam que as chuvas podem
demorar um pouco mais a chegar na região. Segundo ele, há o risco de que essa
seca quebre o recorde da ocorrida em 2010.
"No final de setembro,
o nível dos rios em diferentes pontos de medição da Amazônia Ocidental estava
abaixo do mesmo período no ano em que tivemos o recorde. Com a perspectiva de
que tenhamos chuvas abaixo da média nas próximas semanas, é possível que em
alguns pontos de medição a gente atinja as mínimas históricas em alguns pontos
da Amazônia", disse.
Capital
sob fumaça e botos mortos
Nos últimos dias, as
consequências da estiagem começaram a ser sentidas em diferentes partes da
Amazônia.
Em estados como o Acre, a
seca vem afetando a vida de milhares de moradores da capital, Rio Branco, que
precisam ser abastecidos com água potável por caminhões-pipa iguais aos que
atuam no semiárido do Nordeste brasileiro.
Pelo menos 4 mil famílias na
capital do Acre dependem desse serviço.
Além disso, as autoridades
locais já estimam prejuízos na agricultura em culturas importantes para a
região como a da mandioca, a piscicultura, entre outras.
Em Rondônia, outro Estado
afetado pela estiagem, o baixo nível do Rio Madeira levou à suspensão
temporária do funcionamento da usina hidrelétrica de Santo Antônio, uma das
maiores do Brasil.
No Amazonas, 50 municípios -
de um total de 62 - já declararam situação de emergência.
Na semana passada, o governo
federal anunciou um pacote de medidas para mitigar a situação que inclui a
distribuição de mantimentos (comida e água potável) a populações afetadas e a
dragagem de rios para permitir a navegação, principal meio de transporte na
região.
A estimativa é de que pelo
menos 451 mil pessoas já tenham sido afetadas, mas o governo estadual avalia
que esse número possa mais que dobrar e chegar a 500 mil até o final do ano,
caso as chuvas não comecem a cair na região.
A situação no Estado passou
a chamar ainda mais atenção nesta semana por conta de uma nuvem de fumaça
espessa que atingiu Manaus.
Segundo o portal G1, Manaus
chegou a ter uma concentração de 499 µg/m3 de material particulado de até 2,5
micrômetros de diâmetro, conhecido pela sigla PM 2,5). A quantidade é 100 vezes
maior do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 5
µg/m3.
Em meio a esse cenário,
escolas em Manaus abonaram faltas, cancelaram atividades externas como aulas de
educação física e orientaram os alunos a utilizarem máscaras durante todo o
dia.
Em entrevista coletiva
realizada na sexta-feira (13/10), a ministra do Meio Ambiente e Mudança
Climática, Marina Silva, disse que a fumaça que atinge Manaus é resultado de
uma conjunção de fatores. Entre eles, estaria a seca prolongada.
"Há um cruzamento de
três fatores. O primeiro deles é a grande estiagem provocada pelo El Niño que é
agravada pela mudança do clima; matéria orgânica em grande quantidade
ressecada; e ateamento de fogo em propriedades particulares e dentro de áreas
públicas de forma criminosa", disse a ministra.
"O que nós temos hoje é
uma situação bastante perigosa", alertou a ministra.
Dados do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que o número de focos de incêndio
registrados no Amazonas nos primeiros 15 dias de outubro aumentou 94% na
comparação com o mesmo período do ano passado. Entre 1º e 15 de outubro de
2022, foram detectados 1.503 focos. Em 2023, já foram 2.929.
Na mesma coletiva, o
presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais
Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, disse que os incêndios que levaram
fumaça a Manaus estariam ocorrendo em municípios relativamente próximos da
capital como Autazes e Careiro.
A fumaça gerada por essas
queimadas estaria sendo carregada pelo vento em direção à capital amazonense.
Agostinho anunciou o envio
de 149 brigadistas de combate a incêndios (totalizando 289) florestais ao
Amazonas, dois helicópteros, doação de equipamentos ao governo estadual e a
transferência de pelo menos R$ 35 milhões para serem usados em ações contra as
queimadas na região.
Dados do Sistema Eletrônico
de Vigilância Ambiental (Selva), projeto mantido em parceria com a Universidade
Estadual do Amazonas (UEA), apontava que a situação havia melhorado no domingo
(15/10). Uma das estações de monitoramento localizada em Manaus indicava uma
concentração de 90,8 µg/m3.
Mas não são apenas os seres
humanos que estão sofrendo com a estiagem. Nos últimos dias, uma cena chamou
atenção em Tefé, uma cidade a 570 quilômetros de Manaus, próximo ao rio
Solimões.
Pelo menos 141 botos de
diferentes espécies apareceram mortos nas areias do lago que banha a cidade em
um espaço de menos de uma semana, segundo o Instituto Mamirauá, vinculado ao
Ministério da Ciência, Tecnologia e Informações (MCTI), e que atua na região.
Cientistas afirmam que isso
não tem precedentes na região.
"É uma coisa que nunca
se viu antes, mesmo em outras secas extremas e que não se tem notícia em outros
locais ou com outras espécies", disse à BBC News Brasil a pesquisadora
Miriam Marmontel, especialista em mamíferos aquáticos e que trabalha no
Instituto Mamirauá.
As causas das mortes ainda
estão sendo investigadas, mas os indícios levam a crer que a estiagem tenha
alguma relação com isso.
Impactos
futuros
Apesar de esta seca ainda
não ter registrado a máxima histórica, cientistas já se preocupam com os
possíveis impactos futuros dessa estiagem. Eles temem que um agravamento do El
Nino, por exemplo, atrase o início da estação chuvosa, diminuindo o nível dos rios
no próximo ano, repetindo o ciclo de seca.
"Existe essa
possibilidade. Isso poderia fazer com que os rios, que já estão com níveis
abaixo das suas médias históricas, não recuperem seus níveis ao final da
próxima estação chuvosa. Isso faria com que a gente entrasse a próxima estação
seca com os rios já em níveis abaixo do normal", explica Giovanni Doliff,
do Cemaden.
Miriam Marmontel,
especialista em mamíferos aquáticos que acompanhou a morte de botos na Amazônia
também tem esse temor.
"O panorama é muito
sombrio se continuar nessa situação [...] é uma coisa que vai persistir nos
próximos anos. A gente está vendo as mudanças climáticas e o aumento do calor.
Isso vai se repetir", disse Marmontel.