Antes incomuns no país, crimes têm aumentado
Há doze anos, um jovem de 23
anos invadiu a escola onde havia estudado no bairro de Realengo, na zona oeste
do Rio de Janeiro, e produziu um massacre que chocou o país: armado com dois
revólveres, ele disparou contra os alunos, matando doze deles e cometendo suicídio
em seguida. Na época, o episódio assustador foi tratado pela imprensa como de
fato era até então: algo fora do comum no Brasil. Há alguns anos, no entanto, a
ocorrência de diversos casos similares tem exigido atenção das autoridades e
gerado preocupação em pesquisadores, que apontam caminhos para enfrentar esse
cenário.
Anteontem (5) uma creche em
Blumenau (SC) se tornou alvo de um homem de 25 anos que tirou a vida de quatro
crianças. Nesse caso, investigações preliminares não apontaram nenhum vínculo do
agressor com a instituição. Há menos de dez dias, outro ataque causou uma morte
e deixou cinco pessoas feridas na Escola Estadual Thomazia Montoro, no bairro
Vila Sônia, em São Paulo. O crime foi cometido por um de seus alunos, de 13
anos.
Nos últimos anos, outros
episódios similares que tiveram grande repercussão no país também foram
promovidos por estudantes ou ex-estudantes, como os registrados em Aracruz (ES)
no ano passado e em Suzano (SP) em 2019.
Ataques pelo país
De acordo com mapeamento da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) sobre casos de ataques em escolas por alunos ou
ex-alunos, o primeiro episódio foi registrado em 2002. À época, um adolescente
de 17 anos disparou contra duas colegas dentro da sala de aula de uma escola
particular de Salvador. O levantamento da Unicamp deixa de fora episódios de
violência não planejados, que podem ocorrer, por exemplo, em decorrência de uma
briga.
Foram listadas 22 ocorrências
desde 2002, sendo que em uma ocasião o ataque envolveu duas escolas. Em três
episódios, o crime foi cometido em dupla. Em cinco, os atiradores se suicidaram
na sequência. Ao todo, 30 pessoas morreram, sendo 23 estudantes, cinco
professores e dois funcionários das escolas.
Do total de casos, 13 (mais da
metade) estão concentrados apenas nos últimos dois anos.
Extremismo de direita
A preocupação com a situação
levou o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP),
Daniel Cara, a coordenar a criação de um grupo formado por 11 pesquisadores de
universidades de diversos estados do país. No final do ano passado, eles
elaboraram um documento analisando o cenário e propondo estratégias concretas
para a ação governamental.
Segundo os pesquisadores,
esses casos devem ser classificados como extremismo de direita, pois envolvem
cooptação de adolescentes por grupos neonazistas que se apoiam na ideia de
supremacia branca e masculina e os estimulam a realizar os ataques. Esses
grupos disseminam um discurso que valoriza o preconceito, a discriminação, o
uso de força e que encoraja direta e indiretamente atos agressivos e violentos.
Para os pesquisadores, medidas de prevenção só serão eficazes se atuarem sobre
esse cenário.
"É necessário compreender
que o processo de cooptação pela extrema-direita se dá por meio de interações
virtuais, em que o adolescente ou jovem é exposto com frequência ao conteúdo
extremista difundido em aplicativos de mensagens, jogos, fóruns de discussão e
redes sociais", registra o documento.
A presença de símbolos
associados a ideologias de extrema-direita tem sido recorrente nestes atos
violentos. O autor de um ataque realizado em fevereiro deste ano com bombas
caseiras em uma escola em Monte Mor (SP), que não resultou em mortos ou feridos,
vestia uma braçadeira com a suástica nazista. Artigo similar foi usado no
massacre que deixou quatro mortos e diversos feridos em duas escolas de Aracruz
em novembro do ano passado. O jovem responsável pelo episódio de violência
usava sobre a manga de sua roupa camuflada uma braçadeira com um emblema que
era usado por nazistas alemães.
Siege mask
No recente ataque registrado
na Vila Sônia, em São Paulo, assim como no de Aracruz no ano passado, o autor
vestia ainda uma máscara de esqueleto. Usada pelo personagem Ghost da franquia
de jogos Call Of Duty, ela é conhecida como siege mask e se popularizou em
fóruns de gamers extremistas para depois se tornar um aparato de identificação
de simpatizantes neonazistas em todo o mundo. É hoje uma marca em atos da
extrema-direita.
Ela aparece, por exemplo, em
janeiro de 2021 na invasão do Capitólio, edifício que abriga o Congresso dos
Estados Unidos, por uma multidão descontente com a derrota do ex-presidente
Donald Trump nas eleições presidenciais do país. Esteve presente também nos
atos antidemocráticos ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro desse ano.
Imagens de câmeras de segurança captaram a imagem de um homem utilizando a
máscara em meio ao grupo de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro que
depredaram o Palácio do Planalto e defendiam uma intervenção militar para depor
o recém-iniciado governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo sustentam alguns
pesquisadores, a siege mask foi adotada por grupos de extrema-direita por suas
semelhanças com a caveira que era usada como emblema pela Totenkopf, uma
divisão da SS, organização paramilitar ligada ao Partido Nazista que atuou
diretamente no Holocausto. Essa máscara também está associada com o massacre
realizado por uma dupla que deixou oito mortos em 2019 na Escola Estadual Raul
Brasil, em Suzano. Um dos responsáveis pelo crime a utilizava em fotos
compartilhadas nas redes sociais.
"Sensação de
pertencimento"
A educadora Telma Vinha,
coordenadora da pesquisa realizada pela Unicamp, observa que há um perfil mais
frequente entre os autores dos ataques: homens jovens brancos geralmente com
baixa autoestima e sem popularidade na escola. "Não são populares na
turma. Eles têm muitas relações virtuais, mas não tanto presenciais. E nutrem
uma falta de perspectiva, de propósito em termos de futuro", pontuou em
entrevista levada ao ar no dia 30 de março pela TV Unicamp.
A pesquisadora também afirma
ser comum a existência de transtornos mentais não diagnosticados ou sem o
devido acompanhamento. Esses quadros podem se desenvolver ou se agravar pela
dificuldade de relacionamento nas escolas, o que pode ocorrer, por exemplo, com
os que são alvos de bullying. Alguns também vivem situações prolongadas de
exposição a processos violentos em casa, incluindo negligências familiares e
autoritarismo parental, o que contribuem para desenvolver um perfil de
agressividade no âmbito doméstico.
Telma observa que a cooptação
tem ocorrido por meio de jogos online, onde há chats paralelos. Dali, se
deslocam para fóruns e redes sociais onde há incentivo de violência e discursos
misóginos e racistas. No ambiente virtual, esses jovens podem experimentar uma
sensação de pertencimento a um grupo que não possuem na escola. O crescimento
dos ataques também tem sido relacionado como um possível desdobramentos da
pandemia de covid-19. Isso porque o consumo de jogos eletrônicos cresceu
durante os períodos de isolamento social, o que deixaria os jovens mais
expostos à cooptação por grupos que propagam discursos de ódio.
Segundo a educadora, na
maioria das vezes, não se tratam de crimes passionais, motivados unicamente por
vingança ou raiva desencadeada por um tratamento recebido. Os autores planejam
fazer o maior número de vítimas, pois têm como objetivo a busca por notoriedade
pública e reconhecimento da comunidade virtual.
"Mesmo agindo de forma
isolada, acreditam que fazem parte de um movimento, se sentem parte de algo
maior", explica.
Ela também ressalta que o
Brasil não está vivendo um fenômeno isolado, mas que casos com características
muito similares também estão sendo registrados em outros países.
Nos Estados Unidos, onde
massacres produzidos por jovens em escolas ocorrem há mais tempo e com mais
frequência, um levantamento realizado pelo jornal Washington Post mapeou 377
incidentes desde 1999. Considerando somente 2021 e 2022, foram 88, quase um
quarto do total.
No Brasil, de acordo com o
mapeamento da Unicamp, os ataques registrados desde 2002 aconteceram em 19
escolas públicas, entre estaduais e municipais, e em quatro particulares.
Segundo Telma, os perfis das instituições são distintos. Por isso, não há razão
para responsabilizá-las. Ela conta que já conheceu professores que se
perguntavam se fizeram algo de errado.
"Não há nada que explique
porque aconteceu em determinada escola e não em outra. Pode acontecer em
qualquer lugar. Tem escolas localizadas em regiões mais violentas dos que as
que foram atacadas. Ataques ocorrem em escolas com diferentes níveis de
estrutura", pondera.
Caminhos
Após os últimos ataques, o
governo paulista se apressou em anunciar algumas medidas, entre elas a alocação
de policiais dentro das escolas e a ampliação de investimento em um programa de
mediação de conflitos nas unidades de ensino. Em Santa Catarina, o prefeito de
Blumenau prometeu a criação de um protocolo de prevenção para evitar novos
casos.
A repercussão dos casos
recentes também levou a adoção de medidas em outros estados. O governo do Rio
de Janeiro anunciou a criação de um Comitê Permanente de Segurança Escolar com
representantes da Segurança Pública e da Educação para atuar na prevenção às
situações de violência nas escolas públicas e privadas.
Por sua vez, o governo federal
criou um grupo interministerial para analisar propostas de políticas públicas.