Projeto é conduzido pela
Orquestra Ouro Preto
Aos nove anos, Sara Prado
Teixeira já sabe tocar Bate o Sino e uma das sinfonias de Beethoven. Por meio
de um projeto de musicalização conduzido pela
Orquestra Ouro Preto, ela encontrou na flauta uma parceira para o seu
desenvolvimento, meses após vivenciar a tragédia de 2019. A comunidade onde ela
mora, em Brumadinho (MG), ainda sente os impactos diretos e indiretos do
rompimento da barragem da mineradora Vale na mina Córrego do Feijão.
"São sinais e marcas que
vão ficar na nossa vida. Vejo o projeto como uma forma de alívio para as
crianças, porque traz novas perspectivas e muita alegria. A Sara se sente muito
feliz tocando flauta, fica ansiosa quando vai ter os encontros. Quando aprende
uma nota nova, uma música nova, ela fica super motivada. Está fazendo muito bem
para ela", diz a mãe de Sara, Giselle Prado Campis Teixeira.
A tragédia ocorreu no dia 25
de janeiro de 2019. Uma barragem da mineradora Vale, situada na Mina Córrego do
Feijão, na zona rural de Brumadinho, se rompeu e liberou uma avalanche de
rejeitos que destruiu imóveis, devastou o meio ambiente e alcançou o Rio
Paraopeba. No episódio, 270 pessoas morreram.
"Moramos na comunidade de
Córrego do Feijão onde ocorreu tudo e estávamos em casa. Tivemos todo aquele
pânico de não saber o que estava acontecendo. Também perdi minha melhor amiga.
E tivemos todos os transtornos de ter que mudar nossa rota para chegar ao
centro de Brumadinho. Fiquei alguns dias sem poder ir para a escola",
lembra Lívia Almeida Silva, que hoje tem 17 anos.
Meses depois, ela começou a
aprender a tocar clarinete. "Ajuda a trazer uma cultura nova, para que as
pessoas não fiquem pensando que Brumadinho é só a lama. É importante também
porque são novas atividades para que as crianças não fiquem sem o que
fazer", observa a jovem.
O pontapé inicial dessa
história envolve um anúncio na Estação Conhecimento de Brumadinho, espaço
criado em 2011 pela Fundação Vale, braço social da mineradora. No local, já
eram desenvolvidas outras ações de cunho socioeducativo, sobretudo com foco no
esporte. Segundo Rodrigo Toffolo, maestro da Orquestra Ouro Preto, um acordo
foi firmado para desenvolver atividades de musicalização por meio do Programa
Vale Música.
Ele conta que a ideia já vinha
sendo desenvolvida antes da tragédia e, assim como toda a cidade, também foi
afetada. "O início teve que ser um pouquinho depois. Só foi colocado para
funcionar em setembro, praticamente oito meses após o rompimento".
Toffolo observa que cada
criança e jovem que participa do projeto carrega suas próprias histórias em
relação ao rompimento da barragem. "Estar junto deles, levando a música
como esperança e como ferramenta de socialização, é muito enriquecedor. O
interior mineiro tem uma musicalidade forte. E uma banda de música caiu super
bem na comunidade de Brumadinho. É um projeto que começou do zero e atualmente
reúne em torno de 120 alunos divididos entre o coral e a banda de música".
Uma preocupação da Orquestra
Ouro Preto foi de oferecer oportunidade a todos, sendo o mais inclusivo
possível. "O melhor é que não houve um processo de seleção. Foi uma opção
dos alunos. Nós demonstramos aos interessados todos os instrumentos: flauta,
trombone, trompete, clarineta. Eles mesmo foram escolhendo o que queriam tocar.
Não houve avaliação de aptidão musical ou de talento. Ninguém foi cortado por
causa disso. Colocamos todo mundo. Claro que daí pode surgir o sonho de se
tornar músico profissional. Mas isso é lá na frente", diz Toffolo.
Sara traz na ponta da língua
as razões de sua escolha. "Eu tinha muita vontade de aprender a tocar um
instrumento. Escolhi a flauta porque ela era pequena, leve e tinha o som bem
bonito", diz a menina.
A pandemia de covid-19 chegou
a afetar o projeto, mas houve um esforço para não interrompê-lo. Antes, havia
três encontros semanais. Lívia conta que agora as atividades ocorrem de forma
virtual uma vez por semana. "No presencial era melhor, porque as aulas
eram mais frequentes. Mas deu ara evoluir de forma online", afirma.
De acordo com a Vale, foi
reservado um orçamento de R$ 650 mil para o projeto em Brumadinho. A mineradora
esclarece que o Programa Vale Música, que também envolve atividades em outros
estados a partir de uma rede de parcerias, não é custeado com recursos do
acordo de reparação dos danos coletivos da tragédia. Trata-se de uma iniciativa
paralela.
O acordo de reparação dos
danos coletivos foi firmado em fevereiro deste ano entre a mineradora, o
governo de Minas Gerais, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o
Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública. Deverão ser destinados
R$ 37,68 bilhões para um conjunto de medidas de caráter reparatório e
compensatório.
Há ações que serão realizadas
diretamente pela Vale, bem como aquelas que serão decididas pelas comunidades
atingidas e as que cabem ao Executivo estadual. O acordo não engloba as
indenizações individuais e trabalhistas que devem ser pagas aos atingidos, as
quais são tratadas separadamente em processos judiciais e extrajudiciais
específicos.
Diálogo
Com 21 anos de existência, a
Orquestra Ouro Preto foi fundada por professores na Universidade Federal de
Ouro Preto (Ufop) e é conhecida por repertórios que vão muito além da música
clássica, incluindo versões para sucessos do rock, jazz, de ritmos brasileiros
e de músicas que ficaram famosas no cinema. Essa diversidade faz com que, entre
seus principais trabalhos, estejam adaptações de composições de Vivaldi, Beatles
e Milton Nascimento. Ao longo de sua trajetória, foram produzidos 11 CDs e sete
DVDs. Um desses DVDs, batizado de Valencianas, foi gravado ao vivo junto com o
cantor Alceu Valença e acabou recebendo o Prêmio da Música Brasileira de 2015.
O projeto desenvolvido em
Brumadinho está associado a outro mais amplo, tocado pelo Núcleo de Apoio a
Bandas da Orquestra Ouro Preto. Trata-se de uma iniciativa que já capacitou
mais de 800 músicos e atua em cinco estados brasileiros: Minas Gerais, Espírito
Santo, Ceará, Rio Grande do Norte e Goiás. O objetivo é estabelecer o diálogo,
a troca de experiências e discussão sobre os caminhos para preservação da
tradição de bandas. São realizadas gratuitamente atividades de capacitação,
incluindo consultorias, palestras, oficinas e aulas práticas.
Parte do conteúdo técnico e
pedagógico, preparado pelo Núcleo de Apoio a Bandas da Orquestra Ouro Preto, é
utilizado na musicalização das crianças e jovens de Brumadinho. "Usamos os
métodos de ensino coletivo, de musicalização em conjunto. A música é muito mais
que tocar, é aprender a viver coletivamente, desenvolver um trabalho comum e
uma ligação com o outro. Numa banda, você precisa ouvir o outro, às vezes tocar
mais baixo para o outro sobressair. É um projeto muito bonito", diz
Toffolo.
Os trabalhos do Núcleo de
Apoio a Bandas chegaram a ser paralisados no ano passado devido à pandemia de
covid-19, mas foram retomados em maio deste ano com encontros virtuais:
regentes de mais de 20 bandas estão participando de aulas semanais. Algumas
novidades foram incluídas no programa de 2021: a partir da demanda das próprias
bandas, está sendo preparado um Curso de Luhteria Básica, onde serão ensinadas
técnicas de reparo de instrumentos.
Também será ministrado, pela
primeira vez, o curso Música e História na Tradição Brasileira. "Apoiamos
bandas com uma história de mais de 150 anos. Bandas com uma inserção gigante na
comunidade", diz Toffolo, acrescentando que o projeto de Brumadinho pode
ser o embrião de uma nova história como essa.