A desinformação figura como principal risco global para
2025 e para os anos que estão por vir – à frente das mudanças climáticas, da
crise ambiental, dos fluxos migratórios, da violência e do terrorismo.
A avaliação é do diretor-geral adjunto de Comunicação e
Informação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (Unesco), Tawfik Jelassi, que esteve no Brasil na última semana para
participar do Seminário Internacional Cetic.br 20 anos – Dados e Análises para
um Futuro Digital Inclusivo.
“Os países não estão preparados o suficiente para combater
a desinformação. Eles são vulneráveis ao impacto negativo da desinformação, o
que é uma questão muito importante. Portanto, sim, a desinformação é o risco
global número um hoje e ao longo dos próximos anos e todos os países do mundo
precisam agir para combatê-la.”
Em entrevista à Agência Brasil, ele defendeu a
regulamentação das redes sociais por todos os países e um pacto global para
combater a desinformação no ambiente virtual. Ele destacou, entretanto, que a
responsabilidade primária pelo combate às fake news deve ser das empresas de
plataformas digitais que têm a obrigação de agir.
"As plataformas digitais são globais. Elas não
reconhecem limites ou fronteiras nacionais. Se não unirmos forças por meio de
ações globais, não poderemos combater efetivamente a desinformação que acontece
nas plataformas digitais", afirmou.
"Cada país precisa ter uma regulamentação sobre isso.
Mas precisamos ter uma abordagem verdadeira porque somente unindo forças
internacionalmente é que podemos combater esse risco global. E a tecnologia não
conhece barreiras", completou o especialista que tem doutorado em Sistemas
de Informações Gerenciais pela Universidade de Nova York.
Jelassi citou um estudo do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts que aponta que mentiras se espalham 10 vezes mais rápido que a
verdade. "Uma vez que se espalham como fogo, o dano já está feito. Como
podemos desfazê-lo? Não podemos. Mesmo que se tente retificar essa informação,
o dano já aconteceu. Então, precisamos prevenir, precisamos combater a
desinformação."
A Unesco está organizando uma conferência global em junho
para debater temas como inteligência artificial e transformação digital no
setor público.
Para Jelassi, é necessário que o setor público acompanhe a
transformação digital do mundo oferecendo aos seus cidadãos serviços de melhor
qualidade utilizando tecnologias. Para isso, ele defende que os países coloquem
como centro das políticas públicas o investimento no desenvolvimento de
capacidades e habilidades dos seus recursos humanos.
"Uma questão específica que abordaremos [na
conferência] é a construção e o desenvolvimento de capacidades. A partir dos
nossos estudos, percebemos que, em diversos países, muitos servidores públicos
não têm a competência ou o conjunto de habilidades necessárias para ter sucesso
na transformação digital. Acreditamos que isso esteja no cerne de uma ação
governamental."
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Agência Brasil: O senhor disse, certa vez, que um dos
desafios e oportunidades mais importantes da nossa era é transformar
tecnologias digitais em uma força para o bem. Como tem funcionado o trabalho
que a Unesco realiza no sentido de contribuir para essa questão?
Towfik Jelassi: A tecnologia, de certa forma, é neutra. As
pessoas podem usá-la de forma positiva ou negativa. Ela apresenta
oportunidades, mas também riscos. Quando digo que a tecnologia deve ser usada
como uma força para o bem, cito um exemplo: devemos usá-la para combater a
desinformação, sobretudo no que diz respeito à inteligência artificial. Devemos
ser capazes de detectar informações não factuais. Devemos ajudar na moderação e
na curadoria de conteúdo. Não queremos que a tecnologia seja usada para prejudicar
as pessoas, para prejudicar as sociedades. Não queremos que a tecnologia se
torne um perigo.
A Unesco acredita firmemente que a informação e, claro, as
tecnologias da informação e a comunicação devem ser um bem público comum e não
um dano público. A tecnologia não só pode como já foi usada como uma força para
o bem. Por exemplo: na saúde, na agricultura, no combate às mudanças climáticas
e em soluções para a crise ambiental. Esses são usos positivos da tecnologia.
Mas também temos que combater a desinformação, o discurso de ódio e outros
conteúdos online prejudiciais.
Agência Brasil:
Alguns dos trabalhos recentes propostos pela Unesco incluem
recomendações sobre a ética no uso da inteligência artificial. O senhor pode
falar um pouco sobre isso?
Jelassi: Em 2018, a Unesco iniciou um projeto massivo em torno do uso ético da inteligência artificial – pelo menos três ou quatro anos antes do surgimento do ChatGPT e da inteligência artificial interativa. A Unesco é reconhecida por ser, de certa forma, o think tank [laboratório de ideias] do sistema das Nações Unidas, uma espécie de antecipadora das mudanças que virão e de seus impactos, inclusive no que diz respeito à tecnologia. Então, em 2018, a Unesco içou a bandeira do que estávamos prestes a ver: o avanço de uma tecnologia muito sofisticada chamada inteligência artificial, que pode ser usada como uma força para o bem, mas que também apresenta riscos e perigos.
Teletrabalho, home office ou trabalho remoto. - Marcelo Camargo/Agência Brasil.
A Unesco pediu responsabilidade ética dentro do uso da
inteligência artificial. O trabalho incluiu consultas globais abertas e, claro,
trabalhos de especialistas mundiais sobre o assunto, o que culminou, em 2021,
com os 193 Estados-membros aprovando as Recomendações sobre a Ética na
Inteligência Artificial. Esse foi o primeiro instrumento normativo global
desenvolvido sobre esse assunto e fico feliz em dizer que, hoje, temos 70
países ao redor do mundo que estão implementando essas recomendações para o uso
ético e responsável da inteligência artificial.
Agência Brasil: Onde se encontra o Brasil neste processo?
Jelassi: O Brasil está bastante avançado e está entre os
países que, claro, votaram a favor desta recomendação global da Unesco e que
também implementaram os princípios e as diretrizes contidos nesta importante
publicação.
Agência Brasil: A
Unesco tem apelado ao uso responsável e ético da inteligência artificial. Como
estão as coisas neste momento e o que precisa mudar em relação a essa temática?
Jelassi: Existe um diferencial importante entre as
tecnologias digitais: elas se desenvolvem numa velocidade muitíssimo alta, que
países e entidades reguladoras não conseguem acompanhar. É o que acontece quando se tem uma tecnologia
como a inteligência artificial, que impacta tantos setores. Por exemplo: um
professor não pode mais aplicar uma prova para que os alunos levem para casa
porque sabe que a resposta virá do ChatGPT e todos os alunos passarão na prova.
Então, hoje, não vivemos mais um momento que que precisamos melhorar ou
reformar a educação. Estamos em uma era onde precisamos transformar a educação,
transformar o ensino, transformar a aprendizagem, transformar a avaliação dos
alunos. Este é apenas um exemplo. Posso dar um exemplo também na agricultura,
sobre como a inteligência artificial transforma a maneira como os agricultores
cuidam de seus negócios. Hoje, você pode saber, com base no tipo de solo,
clima, cultivo, água e irrigação qual a melhor semente a ser cultivada em uma
determinada terra, além do uso de fertilizantes personalizados – não mais de
fertilizantes genéricos, mas fertilizantes personalizados para ajudar a
otimizar o campo de cultivo.
Tudo isso graças ao big data, à análise de dados, aos
algoritmos preditivos, aos sistemas de informação geográfica, a imagens de
satélite, às fotos tiradas com drones. A tecnologia hoje está no cerne da
agricultura. E quem teria pensado nisso, mesmo alguns anos atrás? A tecnologia
impacta todos os setores, todas as indústrias, nossas vidas, nós mesmos como
indivíduos, a sociedade em geral. Portanto, temos que exigir o uso responsável
e ético da inteligência artificial, que respeite a dignidade humana, a privacidade
de dados e os direitos humanos. Não é porque a tecnologia está aí para nos
permitir fazer tudo que podemos simplesmente ir em frente. Temos que ser
cidadãos responsáveis e temos que ser usuários éticos dessa tecnologia.
Agência Brasil: O senhor pode falar um pouco sobre as
diretrizes da Unesco voltadas especificamente para gestores de plataformas
digitais e que visam combater a desinformação, o discurso de ódio e outros
conteúdos online?
Jelassi: Esse é um
tópico muito importante hoje porque todos nós, cidadãos do mundo, passamos
várias horas por dia em mídias sociais ou plataformas digitais. Estudos mostram
que uma porcentagem bastante significativa de pessoas está conectada a mídias
sociais e plataformas digitais – do minuto em que acordam pela manhã até a hora
de dormir. Elas têm, em média, entre sete e oito horas por dia de conexão com
as mídias sociais. Quando estão no trabalho, quando estão em movimento, quando
estão almoçando ou jantando, elas ainda estão conectadas. Essa é a realidade de
hoje. Mas nem tudo o que vemos online é informação factual, é informação
verificada, é dado objetivo. Não podemos confiar em tudo porque há, como você
mesma disse, uma quantidade crescente de desinformação e informações falsa.
Sabemos que, especialmente pelo meio digital, mentiras são
transmitidas muito mais rápido que a verdade. Um estudo do Instituto de
Tecnologia de Massachusetts, em Boston, revelou que mentiras viajam 10 vezes
mais rápido que a verdade. Mas, uma vez que se espalham como fogo, o dano já
está feito. Como podemos desfazê-lo? Não podemos. Mesmo que se tente retificar
essa informação, o dano já aconteceu. Então, precisamos prevenir, precisamos
combater a desinformação. Ela é muito, muito prejudicial. Temos que garantir
que sejam fatos e não informações falsas que são disseminadas online.
Permita-me citar Maria Ressa, jornalista filipina que recebeu o Nobel da Paz de
2021. Ela disse:
‘Sem fatos, não há verdade. Sem verdade, não há confiança.
E sem confiança, não temos uma realidade compartilhada’. Todos podem ter sua
opinião, mas devem ser os fatos o conteúdo a ser compartilhado. É a realidade
que deve ser compartilhada. Ninguém pode apresentar seus próprios fatos ou sua
própria realidade. Sobretudo quando esses fatos estão errados e podem manipular
as pessoas, podem influenciar as pessoas.
Sabemos que a informação, a liberdade de expressão e a
liberdade de mídia são a pedra angular da sociedade democrática e precisamos
preservá-las. Porque, se nossa sociedade for dominada por desinformação,
discurso de ódio e coisas do tipo, isso pode ser algo que divide. Pode colocar
alguns grupos de pessoas ou algumas comunidades contra outras, ou alguns
indivíduos contra outros. E isso é muito prejudicial para nós como sociedade,
como comunidade.
Agência Brasil: A desinformação pode ser considerada o
principal risco global para 2025 e para os próximos anos? O que pode ser fazer
a respeito?
Jelassi: Sim, mas
não sou eu quem pensa assim. São duas fontes que temos. Uma delas é o Fórum
Econômico Mundial de Davos que, em janeiro de 2025, publicou um relatório anual
no qual coloca a desinformação como o risco global número um para 2025 e para
os próximos dois anos, com base em suas pesquisas e seus estudos. Eles colocam
a desinformação como risco global número um, à frente das mudanças climáticas,
da crise ambiental, dos fluxos migratórios, da violência e do terrorismo. Já em
março de 2025, as Nações Unidas publicaram o Relatório Mundial de Risco Global
e colocaram a desinformação como risco global número um com base em dois
critérios: o primeiro é a importância e o segundo é a vulnerabilidade dos
países. Ou seja, os países não estão preparados o suficiente para combater a
desinformação. Eles são vulneráveis ao impacto negativo da desinformação, o
que é uma questão muito importante. Portanto, sim, a desinformação é o risco
global número um hoje e ao longo dos próximos anos e todos os países do mundo
precisam agir para combatê-la.
Agência Brasil: O senhor acredita que precisamos unir
forças para enfrentar todos esses problemas e tornar o ciberespaço um lugar
mais confiável?
Jelassi: Absolutamente. Por que precisamos unir forças em
nível internacional, em nível global? Porque as plataformas digitais são
globais. Elas não reconhecem limites ou fronteiras nacionais. Elas espalham a
palavra. Elas são globais por natureza. Se você usa qualquer uma dessas
plataformas digitais ou mídias sociais, você as usa no Brasil, você as usa em
qualquer país do mundo. Então, se não unirmos forças por meio de ações globais,
não poderemos combater efetivamente a desinformação que acontece nas plataformas
digitais. Claro, cada país precisa ter uma regulamentação sobre isso. Mas
precisamos ter uma abordagem verdadeira porque somente unindo forças
internacionalmente é que podemos combater esse risco global. E a tecnologia não
conhece barreiras.
Agência Brasil: Como buscar um uso responsável e transparente das plataformas, além de uma melhor moderação de conteúdo por parte das empresas de tecnologia?
O diretor-geral adjunto de Comunicação e Informação da Unesco, Tawfik Jelassi, durante entrevista para a Agência Brasil. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
Jelassi: Boa pergunta. Mais uma vez, não estamos falando de
utopia. Quando falamos sobre governança efetiva de plataformas digitais, isso
não é uma ilusão. Pode efetivamente ser feito. Vou dar um exemplo de uma
plataforma digital que tem mais de 1,5 milhão de usuários ativos e onde não
vemos discurso de ódio, não vemos assédio online, não vemos desinformação:
LinkedIn. Sou um usuário diário. Talvez passe uma hora a uma hora e meia todos
os dias. É uma plataforma, como eu disse, com mais de 1,5 milhão de pessoas,
mas que está cumprindo sua missão, está atraindo pessoas – especialmente
profissionais. Está funcionando.
Não precisamos acreditar que qualquer plataforma, por
natureza, tem que ser uma força para o mal ou deve necessariamente espalhar
informações falsas. Se elas tiverem os algoritmos adequados, se seguirem os
princípios que mencionei antes, se tiverem a curadoria de conteúdo adequada, a
moderação de conteúdo adequada, filtrando mensagens de violência, mensagens de
ódio, podem funcionar.
As empresas de tecnologia não deveriam deixar que esse tipo
de coisa fosse disseminado e exibido em todo o mundo através de suas
plataformas. Elas gerenciam as plataformas, não os usuários. Claro, há um
modelo de negócios por trás disso. O que atrai as pessoas? A desinformação.
Porque notícias falsas geram barulho. E as pessoas não sabem que elas são
necessariamente falsas. As pessoas dizem:
‘Nossa, deixe-me compartilhar isso com um amigo’. Assim, a
desinformação é compartilhada em grande escala. Quanto mais você dissemina esse
tipo de informação, mais pessoas clicam nela. Quanto mais cliques, mais
empresas anunciam online nessa plataforma. E, com mais publicidade online, mais
lucro.
Podemos ver como o modelo de negócios, de certa forma, não
exatamente favorece a desinformação, mas permite que ela aconteça. Por isso, as
empresas de plataformas digitais têm a responsabilidade primária de agir.
Agência Brasil: O senhor pode falar um pouco sobre a
temática da transformação digital do setor público, que será discutida em junho
em uma conferência global organizada pela Unesco? Trata-se de um tema de
interesse para todos os Estados-membros?
Jelassi: A Unesco está organizando uma conferência global
nos dias 4 e 5 de junho de 2025, em sua sede, em Paris, sobre inteligência
artificial e transformação digital no setor público. Acreditamos que, para que
qualquer país e qualquer governo possam melhorar seus serviços aos cidadãos,
eles precisam usar tecnologias digitais, precisam transformar seu
relacionamento com os cidadãos e o tipo de serviços e de administração pública
que oferece aos cidadãos. Esse é o foco desta conferência. E uma questão específica
que abordaremos é a construção e o desenvolvimento de capacidades. A partir dos
nossos estudos, percebemos que, em diversos países, muitos servidores públicos
não têm a competência ou o conjunto de habilidades necessárias para ter sucesso
na transformação digital. Acreditamos que isso esteja no cerne de uma ação
governamental.
A inteligência artificial é um facilitador importante para serviços digitais inovadores para os cidadãos. É por isso que estamos realizando esta conferência. A Unesco desempenha um papel fundamental não apenas na advocacia, mas também na formulação de políticas, no desenvolvimento e na capacitação. Não basta fazer propaganda. Não basta desenvolver uma política ou estratégia a ser implementada. É preciso ter recursos humanos com competências e habilidades.