Projeto
inclui visitações guiadas com jovens e estudantes no Rio
Para além dos livros e
arquivos, é difícil encontrar referências explícitas no Rio de Janeiro ao
período da ditadura militar. Não há centros de visitação, tampouco museus sobre
o tema. Com isso em mente, a historiadora Samantha Quadrat, professora da
Universidade Federal Fluminense (UFF), mapeou lugares da cidade que guardam as
memórias do regime autoritário entre 1964 e 1985.
Desde o ano passado, ela coordena
visitas guiadas com estudantes da educação básica, universitários e
professores. A atividade é parte do projeto “Lugares de Memórias”, apoiado pela
bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - CNPq.
“Roteiros como esses
permitem que você fomente questionamentos, empatia pelas vítimas, valores
democráticos, e que discuta também a relação da cidade com as forças de
segurança. É uma possibilidade de pensar o ensino na ditadura militar”, explica
a historiadora. “A gente não tem no Rio um museu como o de São Paulo, o
Memorial da Resistência. Então, é importante que a gente ocupe a cidade, se
aproprie cada vez mais dela, dessa história e dessas memórias”, argumenta.
O primeiro roteiro que a
pesquisadora desenvolveu foi sobre o movimento estudantil secundarista. A ideia
é tornar mais conhecida a atuação desse grupo durante o regime militar, por
entender que as histórias sobre a resistência universitária costumam receber
mais atenção. Samantha mapeou pontos emblemáticos da cidade que lembrem
principalmente a vida e o assassinato do estudante Edson Luís, símbolo da luta
dos secundaristas.
Restaurante
Calabouço
Um dos destaques é o prédio
do Ministério Público, na região central do Rio. No espaço onde hoje existe um
estacionamento, funcionava na década de 60 o restaurante Calabouço. Ele havia
sido instalado originalmente em um ponto do bairro do Flamengo e fornecia
refeições com preços mais baixos para estudantes da rede pública.
O prédio foi demolido e um
novo estabelecimento aberto no centro. Mas a obra estava inacabada e o
restaurante passou a selecionar quais usuários podiam entrar. No dia 28 de
março de 1968, um grupo de estudantes secundaristas ocupou o lugar e protestou
contra as novas condições. Dezenas de policiais militares interromperam a
manifestação e atiraram nos estudantes. Edson Luís Lima Souto, de 18 anos, foi
atingido no peito.
A história continua na Santa
Casa de Misericórdia, também incluída na visita guiada. Depois de baleado,
Edson Luís foi conduzido para lá, onde foi confirmada a morte. Os colegas
secundaristas impediram que o corpo fosse levado ao Instituto Médico Legal
(IML), com medo de que os policiais sumissem com ele. O destino escolhido foi a
então sede da Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara, atual Câmara
Municipal. É no local que termina o roteiro com a historiadora.
“Ali, diante dos olhos
vigilantes dos estudantes que temiam o que a ditadura poderia fazer com o corpo
do secundarista, foram feitas a autópsia e o velório. Aos poucos, milhares de
pessoas foram chegando para prestar homenagem e protestar contra a ditadura.
Infelizmente, esse episódio não é lembrado na visitação guiada que é realizada
no local”, afirma a historiadora.
Edson
Luís homenageado
A única lembrança concreta
que existe do episódio no Rio é o monumento criado em 2008 para homenagear
Edson Luís. Foi uma oferta à cidade da então Secretaria Especial dos Direitos
Humanos, do governo federal. Ele fica na praça Ana Amélia, perto da Santa Casa
de Misericórdia.
A escultura traz uma
bandeira rasgada em meio a uma mancha vermelha e pegadas de vidro na base. Mas
quem chega ali hoje não encontra placa, nem qualquer outra referência
explicativa. A reportagem da Agência Brasil chegou a ser abordada por um
morador da região que desconhecia o significado do monumento.
A pesquisadora prepara
outros roteiros sobre a ditadura, que vão trazer recortes temáticos como o
golpe de 64 e a história do Destacamento de Operações de Informação - Centro de
Operações de Defesa Interna - DOI-CODI, o órgão de inteligência e repressão
subordinado ao Exército brasileiro. Ela reforça que ações como essa são
importantes para resistir aos silêncios, intencionais ou não, do período
autoritário que o país viveu. Mas que é fundamental que o Rio de Janeiro e
outras cidades invistam na preservação dessa história.
“A ditadura e os governos
democráticos, durante os debates da modernização, acabaram destruindo alguns
desses lugares de memória. É urgente que a gente tenha centros de memória. Um
deles deveria ser no prédio do Departamento de Ordem Política e Social - DOPS -
que está caindo aos pedaços e que chegou a ser o museu da polícia. É
fundamental que a gente crie a demanda pelos memoriais, que haja reflexão na
cidade, que consiga fazer um museu como o Chile fez, de memória e direitos
humanos”, afirma Samantha.
O destino do prédio onde
funcionou o DOPS, no centro da cidade, está em disputa há anos. Recentemente, a
deputada estadual Dani Balbi (PSOL) apresentou projeto na Assembleia
Legislativa do Estado (Alerj) para que seja criado no prédio o Museu da Memória
e da Verdade do Estado.
Serviço
Colégios, professores,
estudantes e outros interessados em participar das visitas guiadas do projeto
“Lugares de Memória” podem escrever para o e-mail da historiadora
(samantha.quadrat@gmail.com) ou entrar em contato pela conta do Instagram
(@lugaresdememoria).