Era quase véspera de Natal
quando o sergipano Arthur Bispo do Rosario, então com 29 anos de idade, recebeu
a revelação que iria definir sua vida e obra.
Na noite de 22 de dezembro
de 1938, guiado pelo que descreveu como a aparição de sete anjos e vozes
celestiais, ele peregrinou durante dois dias pelas ruas do Rio de Janeiro, onde
morava, até chegar ao Mosteiro de São Bento, no centro da cidade.
Após anunciar aos monges que
era um enviado de Deus para "julgar os vivos e os mortos", Bispo foi
encaminhado ao Hospital Nacional de Alienados, antigo manicômio localizado na
Praia Vermelha. Diagnosticado com esquizofrenia paranoide, foi transferido dias
depois para a Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica em Jacarepaguá
onde passaria a maior parte das cinco décadas seguintes.
Segundo Bispo, as vozes que
o acompanhavam diziam que ele deveria se "trancar em um quarto e começar a
reconstruir o mundo" e "representar todas as coisas existentes na
Terra". Durante o resto da vida, ele se dedicou incansavelmente a cumprir
a missão divina que acreditava ter recebido, de catalogar e organizar "o
caos do mundo" em preparo para o Dia do Juízo Final.
Ele transformou as celas em
que estava confinado em oficina de trabalho e começou a recriar cenas do
cotidiano e a contar a sua versão da história do universo. Utilizava qualquer
material que encontrasse, como lençóis, uniformes, pedaços de madeira de caixas
de feira, cabos de vassouras, chinelos, tênis Conga, talheres, canecas e todo o
tipo de sucata e objetos que ganhava e trocava com outros pacientes.
Quando morreu, em 1989, aos
80 anos, havia deixado um acervo de mais de mil objetos, entre estandartes,
indumentárias, bordados, vitrines, fichários, móveis, esculturas, miniaturas e
outras peças diversas sem categorização. Nenhuma tinha data ou a assinatura do
autor.
Pobre, negro e considerado
"louco", Bispo passou a vida inteira à margem da sociedade, e não se
considerava um artista e nem via seu trabalho como arte. "Essa é minha
missão, representar a existência na Terra. É o sentido da minha vida",
dizia.
Mas, a partir da década de
1980, nos anos finais de sua vida, o mundo artístico começou a descobrir suas
obras. Após a morte, ele continuou a ganhar reconhecimento da mídia e da
crítica especializada, com exposições no Brasil e no exterior e uma
apresentação na Bienal de Veneza, em 1995, onde sua arte foi aclamada como
vanguardista.
"Bispo do Rosario é um
dos maiores artistas brasileiros", diz à BBC News Brasil o curador do
Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea, Ricardo Resende. O museu funciona
nas instalações da Colônia Juliano Moreira.
"Quando sua obra
emergiu, não se encaixava em nada do que havia registrado na história da arte,
mas parecia se inserir em tudo o que a modernidade e a contemporaneidade haviam
criado. Na verdade, pode-se dizer, precede tudo", diz Resende.
"O que poderíamos
chamar de ‘estética da precariedade’, ou ‘estética da pobreza’, tão comum na
arte contemporânea, expressando a simplicidade da vida na instituição, nas
cidades e campos, e da criança que nunca foi esquecida. É isso que Bispo involuntariamente
nos apresenta como sua estética."
Agora, sua vida e obra são
tema de uma exposição na galeria da Americas Society, em Nova York, no que é a
primeira retrospectiva dedicada a ele nos Estados Unidos. O título da mostra,
que vai até 20 de maio, é Bispo do Rosario: All Existing Materials on Earth
(Todos os Materiais existentes na Terra), uma referência à missão que marcou a
trajetória do artista.
Do
caos à ordem
Bispo do Rosario nasceu em
1909 na cidade de Japaratuba, em Sergipe. Teve passagem pela Marinha, de onde
foi desligado em 1933 por indisciplina, e uma breve carreira como pugilista
profissional, encerrada após um acidente em que teve o pé esmagado. Também
trabalhou como lavador de bondes na companhia Light e empregado doméstico, até
ser internado.
"Todas essas
experiências de vida, marcadas por diferentes graus de marginalização por conta
de raça, classe e doença mental, se refletem em sua obra", diz à BBC News
Brasil uma das curadoras da mostra, Tie Jojima, responsável pela exposição ao
lado de Ricardo Resende, Aimé Iglesias Lukin e Javier Téllez.
Após a internação inicial,
Bispo chegou a passar alguns períodos fora de instituições psiquiátricas, por
ter fugido ou recebido alta. Em 1954, fugiu da Colônia Juliano Moreira, e nos
anos seguintes exerceu diversas atividades, como segurança, porteiro e
funcionário em uma clínica pediátrica, onde continuou a se dedicar a sua obra,
trabalhando no porão do prédio.
Em 1964, voltou
definitivamente à Colônia e foi instalado no Núcleo Ulisses Vianna, que era
composto por 11 pavilhões cercados por um muro alto, nos quais eram alojados
pacientes considerados violentos ou agitados. Os pavilhões eram divididos em
enfermarias, cada uma com cerca de 40 camas, onde não havia privacidade, e
também tinham uma ala sem camas, chamada de "bolo".
Segundo o Museu Bispo do
Rosário Arte Contemporânea, "nessas alas, os pacientes ficavam amontoados
no chão e, ao seu redor, 10 celas-fortes – pequenos cubículos com portas de
ferro – mantinham os mais agitados contidos ou isolados por punição". Eles
"recebiam alimentação pela fresta da porta e utilizavam um buraco no chão
como sanitário".
Bispo acabou transformando
um conjunto de celas no Pavilhão 10 em ateliê. "Forte e sisudo, o
ex-boxeador tornou-se um 'xerife', posição que lhe assegurou privilégios e
permitiu a recusa de eletrochoques e medicações", descreve o museu.
"Nunca se interessou em participar dos ateliês de arteterapia, mas estava
sempre produzindo objetos num processo criativo incessante e solitário."
Tie Jojima ressalta a
capacidade de Bispo de "resistir e sobreviver às forças que o
reprimiam" e de encontrar formas de "subverter o sistema hospitalar
que deveria controlá-lo". "Ele transformou o espaço em que vivia em
um lugar onde criava seu trabalho e, eventualmente, tinha as chaves e
controlava quem entrava e saía. Também trocava favores com funcionários para
conseguir materiais", destaca.
Bispo trabalhava dia e
noite, e só concedia acesso ao local a quem respondesse qual era a cor de sua
aura. "A criação obsessiva de trabalhos têxteis e o acúmulo de objetos o
levaram do caos à ordem e o ajudaram a sobreviver às duras condições de sua
vida", diz à BBC News Brasil o co-curador Javier Téllez.
Há traços da Colônia por
toda a sua obra, como nas linhas azuis extraídas dos uniformes e utilizadas nos
bordados, nas representações de prédios e nas listas de nomes de pacientes,
psiquiatras e funcionários.
"Era um lugar
extremamente difícil para os pacientes, mas forneceu a Bispo tempo e materiais
para desenvolver sua obra, o que ele não teria conseguido em outro lugar,
considerando sua condição social", observa Téllez.
Descoberta
e reconhecimento
Em 1980, Bispo e seus
trabalhos apareceram em uma reportagem de TV que mostrava a Colônia Juliano
Moreira e denunciava a precariedade em que viviam pacientes psiquiátricos no
Brasil. Dois anos depois, ele foi tema do curta-metragem "Prisioneiro da
Passagem", do fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart.
Também em 1982, estandartes
produzidos por Bispo foram incluídos na mostra coletiva "À margem da
vida", no Museu de Arte Moderna do Rio, na primeira vez que sua obra foi
exibida fora da Colônia. Nos anos seguintes, Bispo foi tema de outras
reportagens, mas somente após a sua morte, em 1989, ele ganhou a primeira
exposição individual, intitulada "Registros de minha passagem pela
Terra".
Suas obras continuaram a chamar
a atenção dos críticos e do público e circularam em mostras em diversas
capitais brasileiras. Em 1991, foi realizada sua primeira exposição
internacional, em Estocolmo, na Suécia, com curadoria de Frederico Morais, que
organizou várias das mostras dedicadas ao artista.
A arte de Bispo continuou
ganhando notoriedade, representando o Brasil na Bienal de Veneza em 1995, e
sendo exposta em diversas cidades e países nos anos seguintes. Sua vida e obra
inspiraram filmes, livros, teses, peças de teatro, espetáculos de dança e até
enredo de escolas de samba, e seu acervo foi tombado pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A mostra na Americas
Society, primeira exposição solo nos Estados Unidos e realizada em colaboração
com o Museu Bispo do Rosario, reúne suas obras mais icônicas, com destaque para
o "Manto da Apresentação", considerado sua obra-prima, que ele
planejava vestir no Dia do Juízo Final.
"A parte externa (do
manto) traz uma seleção de palavras, formas e objetos pertencentes ao seu
universo visual. Na parte interna, bordou nomes de mulheres que conheceu e
escolheu para acompanhá-lo no Dia do Juízo Final", diz Jojima.
Muitos dos trabalhos em
exposição são reconstrução de objetos do cotidiano, com materiais simples que ele
conseguia obter na Colônia. Os bordados têm destaque, assim como os temas que
remetem à sua biografia, como os navios.
Jojima cita, entre os outros
pontos altos da mostra, os Estandartes, feitos de lençóis que Bispo costurava,
com nomes de pessoas que conheceu, eventos mundiais, embaixadas de diferentes
países, navios de guerra e suas experiências de vida no Rio de Janeiro, entre
outros temas. "Funcionam como uma enciclopédia visual e incluem
referências autobiográficas", diz a co-curadora.
A vida e a obra de Bispo
geram debates sobre os limites entre loucura e genialidade e sobre questões de
categorização. "Desde a década de 1980, quando se tornou conhecido no
Brasil e depois internacionalmente, curadores e historiadores debatem se sua
obra pode ser considerada 'arte'", dizem os responsáveis pela exposição.
"Quando chamou a
atenção de instituições de arte e curadores, muitos acharam que não condizia
com nada do que já havia sido visto na história da arte, embora ressoasse com
estratégias e experimentos de artistas do pós-guerra e contemporâneos, que
desafiaram fronteiras disciplinares e abraçaram objetos do cotidiano com o
objetivo de fundir arte e vida", diz o catálogo da mostra em Nova York.
Javier Téllez ressalta que,
apesar das semelhanças com outros artistas modernos e contemporâneos pelo uso
de objetos, há "diferenças radicais em termos de intencionalidade"
entre a obra de Bispo e práticas artísticas de vanguarda e neovanguarda.
"A obsessão de Bispo do
Rosario por colecionar e classificar as coisas é uma necessidade interna que
corresponde a uma visão mística, e não a uma estratégia estética
conceitual", salienta o co-curador.