Lembrar de absolutamente tudo
seria incrível, não é? Funes, o memorioso, pode não ter a mesma opinião.
Aos 19 anos, ele bateu a
cabeça com força ao andar a cavalo e, quando voltou a si, percebeu que havia
adquirido o incrível talento (ou talvez a maldição) de lembrar tudo o que
percebia ao seu redor.
“Essas memórias não eram
simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas e
assim por diante. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos.
Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, mas
cada reconstrução exigia um dia inteiro. No entanto, Funes não era muito capaz
de pensar. Pensar é esquecer as diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo
lotado de Funes só havia detalhes, quase imediatos”.
Salomão, o memorável
Na realidade, Funes nunca
existiu. Ao menos fora da mente prodigiosa do escritor argentino Jorge Luis
Borges e do conto "Funes, o memorioso", publicado em 1942.
Mas, por mais extraordinário que
possa parecer, houve alguém muito parecido no mundo real.
Estamos falando de Solomon
Shereshevski, um mnemonista profissional russo que viveu em Moscou na primeira
metade do século 20 e que foi estudado pelo neuropsicólogo Alexander R. Luria.
Seu livro "A mente de um
mnemonista" (1968) descreve exaustivamente esse caso e é considerado uma
joia da literatura científica.
Shereshevski conseguia lembrar
com precisão longas sequências de letras, números e palavras que mostravam para
ele apenas uma vez, mesmo décadas depois, e sem erros.
A memória de Solomon poderia
ser descrita como “fotográfica”, pois tudo que ele via, lia ou ouvia se
transformava em uma memória que ele percebia claramente com o “olho” de sua
mente, como se estivesse realmente vendo.
Ele também fazia cópias das
informações em formatos sensoriais diferentes do original, fenômeno conhecido
como sinestesia.
O próprio Salomão descreveu
como se lembrava das listas de palavras:
“Normalmente sinto o sabor e o
peso da palavra… e não tenho mais nada o que fazer, ela se lembra de si mesma.
Sinto uma coisa amanteigada escorregar pela minha mão, feita de vários pontos
muito muito claros, que formigam um pouco a minha mão esquerda e já não preciso
mais”.
No entanto, Salomão tinha uma
incapacidade de extrair o significado de textos longos, de entender os duplos
sentidos de poesias, piadas ou provérbios e até de fazer raciocínios lógicos e
matemáticos.
Além disso, Shereshevski tinha
dificuldade para lembrar rostos e vozes de outras pessoas.
Podemos tirar uma conclusão
desse caso: uma memória superlativa não parece implicar maior inteligência ou
melhor capacidade de raciocínio lógico ou abstrato.
William James, um dos pais da
psicologia contemporânea, já havia apontado no final do século XIX: "Se
nos lembrássemos de tudo, seríamos tão deficientes na maioria das vezes como se
não lembrássemos de nada... O resultado paradoxal é que uma condição para
lembrar é que devemos esquecer”.
Uma enciclopédia de
arrependimentos
Outro caso bem conhecido
parece apoiar a ideia de que uma maior capacidade de memória não
necessariamente leva a uma memória melhor.
Nascida em 1965, Jill Price é
uma americana que consegue lembrar, com riqueza de detalhes e com a mesma
intensidade emocional da primeira vez, tudo o que aconteceu em sua vida.
Essa condição é conhecida como
hipertimesia e envolve uma memória autobiográfica exacerbada, que se torna
disfuncional e patológica.
O principal problema é que
Jill não controla o acesso a essas memórias, em vez disso, elas a sobrecarregam
quando ela se depara com um encontro ou outras memórias vinculadas.
“A maioria das pessoas
considera isso uma bênção, mas eu chamo de fardo”, explica ela. "Todos os
dias eu repasso toda a minha vida na minha cabeça e isso está me deixando
louca."
Ela ainda consegue se lembrar
de cada uma das vezes em que sua mãe lhe disse que ela estava engordando na
adolescência, com o mesmo fardo emocional que sentia então.
A memória dela se tornou uma
enciclopédia de arrependimentos que a persegue frequentemente.
O caso de Jill Price foi
exaustivamente investigado pela disciplina de neuropsicologia e ela mesma
escreveu um livro contando sua história.
Os testes de inteligência
apontaram que ela tem uma capacidade intelectual normal, embora sejam
detectadas algumas deficiências no pensamento abstrato e outras funções
executivas.
Como podemos ver, uma memória
ilimitada não nos torna mais inteligentes ou, infelizmente, mais felizes.
As pessoas costumam dizer que
o tempo cura tudo, mas no caso de Jill Price, os momentos ruins de sua vida
estão sempre vivos em sua cabeça.
Os campeões mundiais da
memória
Um caso bem diferente é o dos
mnemonistas profissionais, aquelas pessoas que memorizam longas listas de
números, palavras ou datas a uma velocidade vertiginosa em "campeonatos da
memória".
Por mais surpreendente que
pareça, a maioria desses "prodígios" não tem uma memória
qualitativamente diferente de qualquer um de nós.
Na verdade, eles atingem esse
grande desempenho de memória treinando várias horas por dia durante anos.
A história de Joshua Foer, um
jornalista seduzido pelo assunto ao fazer uma reportagem e que, um ano depois,
foi proclamado vencedor do United States Memory Championship 2006, é bastante
ilustrativa.
Qual era o seu segredo? O
treinamento maciço em regras mnemônicas, conforme descrito em seu divertido
livro "Os desafios da memória".
O curioso é que, além das
informações específicas para as quais são treinados, esses profissionais
cometem os mesmos erros de memória que os demais mortais.
Eles esquecem onde
estacionaram o carro ou o aniversário de um amigo como qualquer outra pessoa.
Na verdade, os casos de memória fotográfica genuína são tão extraordinários que
não representam um fenômeno estatisticamente relevante na população.
Se lembre de esquecer
Voltamos à pergunta do início:
o que aconteceria se pudéssemos nos lembrar de absolutamente tudo?
A pergunta é interessante
porque nos permite questionar a própria natureza desse processo mental tão
importante em nossas vidas.
A memória não é um registro
preciso e muito menos literal da realidade, nem um arquivo histórico do
passado.
Não é reprodutivo, mas
reconstrutivo: abstrai, resume, esquematiza, constrói e generaliza a partir do
momento em que a informação é adquirida.
Assim que lemos ou ouvimos um
texto, esquecemos muito das palavras reais que foram usadas. É assim que
destilamos a essência da mensagem, o nuclear, o simbólico, o interessante.
A memória se desvincula dos
detalhes, se torna abstrata, se torna semântica desde o início de sua obra.
Essa é a maneira pela qual uma memória saudável e ativa se adapta às demandas
de um ambiente em mudança.
A memória fotográfica, nos
pouquíssimos casos descritos pela ciência, pode ser considerada uma aberração,
por excesso, da memória. Ou melhor, uma aberração do esquecimento.
Porque esquecer, apesar de sua
má impressão, é tão necessário quanto recordar para permitir que a memória use
as informações do passado de forma adaptativa para viver no presente e
antecipar o futuro.
Então agora você já sabe:
nunca esqueça de lembrar de esquecer.
*Pedro Raúl Montoro Martínez e
Julia Mayas Arellano são professores titulares e Antonio Prieto Lara é
professor assistente PhD no Departamento de Psicologia Básica da Universidade
Nacional de Educação a Distância (UNED) em Madrid, na Espanha