Um trabalhador brasileiro
que ganhe o salário mínimo tem que trabalhar ininterruptamente cerca de 50
meses, ou mais de quatro anos seguidos, sem gastar nada, para comprar o carro
zero quilômetro mais barato no Brasil atualmente.
O modelo em questão é o
hatchback Renault Kwid, com motor 1.0, cujo preço gira em torno de R$ 70 mil.
Para se ter uma ideia, o
valor médio de um carro novo no Brasil está hoje em torno de R$ 130 mil, quase
o dobro do cobrado em 2017, segundo dados da consultoria Jato Dynamics.
Nesse contexto, algumas
montadoras vêm tendo conversas preliminares com o governo para lançar um
"carro popular" ou “carro verde”, que seria vendido entre R$ 50 mil e
R$ 60 mil.
O objetivo é turbinar as
vendas do setor automotivo, importante gerador de emprego e renda e que
responde por uma parcela significativa do PIB (Produto Interno Bruto) da
indústria, em torno de 22% — e 4% do PIB total. O PIB é a soma de bens e
serviços produzidos por um país em seu território nacional.
Os carros, que poderiam ser
movidos apenas a etanol, teriam os mesmos motores 1.0 utilizados atualmente e
contariam com uma tributação exclusiva por seu apelo ambiental, adequado a
metas de descarbonização, dentro do novo arcabouço fiscal (ler mais abaixo).
Apesar disso, o valor
proposto continua inacessível para o bolso da imensa maioria dos brasileiros,
principalmente em meio ao contexto pós-pandemia, de maior inflação, crédito
mais caro com altas taxas de juros e perda de renda generalizada.
Na contramão do Brasil,
motoristas de mercados desenvolvidos, como Estados Unidos e União Europeia, e
até de países emergentes, como México, acabam pagando bem menos por um modelo
zero quilômetro, sobre a mesma base de comparação que abre esta reportagem.
Mas por que os carros no
Brasil são tão caros?
Razões
Uma combinação de fatores,
entre eles o chamado Custo Brasil (conjunto de dificuldades estruturais,
burocráticas, fiscais e econômicas do país), está por trás desses valores
considerados astronômicos por muitos brasileiros.
Não se trata, porém, de uma
realidade nova — alguns deles sempre foram constantes no mercado automotivo
brasileiro, mas há outros circunstanciais, como a pressão inflacionária e a
escassez de semicondutores no mercado internacional, resultado da recente
pandemia de covid-19.
A lista é longa. Confira
alguns deles.
Impostos
altos
O complexo sistema
tributário do Brasil é considerado um dos principais culpados pelo preço alto
dos carros.
Há diversos impostos que
incidem sobre a venda de automóveis, como ICMS (Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços), IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e
PIS/Cofins (Programa de Integração Social e Contribuição para Financiamento da
Seguridade Social).
Para se ter uma ideia, o
peso dos tributos varia de 30% a 50% do valor final dos carros nacionais. Se o
veículo for importado, essa taxa é maior e pode oscilar entre 60% a 80%.
Um carro que custa US$ 20
mil nos Estados Unidos pode, assim, custar até US$ 35 mil no Brasil.
Protecionismo
e concorrência
Carros importados custam
mais caros do que os nacionais porque sobre eles incidem mais impostos.
Se por um lado, a política
protecionista visa a promover a produção local e o emprego, por outro, limita a
concorrência.
O resultado são preços mais
altos para os consumidores.
Apesar disso, o número de
montadoras hoje presentes no Brasil em nada se compara ao de décadas atrás,
quando o mercado era praticamente dominado por quatro grandes fabricantes de
veículos (Volskwagen, Fiat, Ford e Chevrolet).
Para tanto, marcas
reconhecidas internacionalmente, como Toyota, Honda e Hyundai, tiveram que
produzir no Brasil para baratear custos.
Custos
trabalhistas mais altos
Os encargos trabalhistas do
Brasil estão entre os mais altos do mundo.
Outros países com maior
índice de custo de mão-de-obra são: Argentina, Ucrânia, Uruguai, Turquia,
Rússia, África do Sul, Romênia, Egito e Vietnã, segundo a empresa de análise e
consultoria de dados GlobalData, sediada em Londres, na Inglaterra.
Isso aumenta o custo de
produção de carros e dificulta a competição dos fabricantes com outros países
com custos de mão-de-obra mais baixos.
Estima-se que no país as
empresas gastem duas vezes e meia o que pagam ao trabalhador.
Infraestrutura
precária
Apesar de ser um país de
dimensões continentais, o Brasil padece com a infraestrutura precária, com
muitas estradas e rodovias em más condições.
Isso acaba representando um
desafio para o transporte de automóveis e peças, encarecendo seu custo, que é
repassado ao consumidor.
Real
desvalorizado, pandemia de covid-19 e crise de semicondutores
Houve flutuações cambiais
significativas nos últimos anos, e o real brasileiro perdeu valor em relação ao
dólar americano.
Isso tornou mais caro para
os fabricantes importar peças e equipamentos, o que contribuiu para o aumento
geral dos preços dos automóveis.
Mais recentemente, a
pandemia de covid-19 encareceu matérias-primas, como aço, minério de ferro e
borracha, e desestabilizou as cadeias de suprimento das indústrias, gerando
desafios logísticos que encareceram o valor dos carros ao redor do mundo.
Muitos componentes usados na fabricação dos veículos no Brasil não têm produção
local.
Nesse contexto, destaca-se a
escassez global de semicondutores, que estão presentes por todo o carro, desde
o câmbio, passando por painel, sistema multimídia, retrovisores, sistema de
freio e até motor.
Paixão
por carro e margem de lucro
Há um fator cultural em
jogo, também: a paixão do brasileiro por carros.
"O brasileiro sempre
foi apaixonado por carro e sente-se diferenciado ao tê-lo. O carro é símbolo de
status. É uma questão de oferta e demanda. Se as pessoas continuam comprando
carros e eles estão mais caros, por que vou baixar meu preço?", indaga
Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da Jato Dynamics.
"Evidentemente, não
podemos esquecer que o transporte público continua deficiente e isso acaba
incentivando as pessoas a comprar carros, também, mesmo que tenham que pagá-lo
em diversas prestações", acrescenta.
Por uma questão estratégica,
as montadoras não divulgam suas margens de lucro. Mas, segundo Kalume Neto,
"as margens de lucro no Brasil são, em média, maiores do que vemos nos
mercados americano e europeu".
De fato, com exceção de
2020, ano da pandemia, o faturamento da indústria automotiva no Brasil vem
crescendo — o valor médio de um carro novo passou de R$ 71 mil em 2017 para R$
131 mil no ano passado, um aumento de 85% — no mesmo período, a inflação
acumulada oficial, medida pelo IPCA, foi de 36%.
Vale lembrar, no entanto,
que o mercado mudou nos últimos anos — em 2022, pela primeira vez, a maior
parte das vendas (52,9%) foi para Pessoa Jurídica (CNPJs, vendas diretas para
locadoras, pessoas com deficiência, frotistas, entre outras).
Ou seja, menos brasileiros
estão comprando carro novo. Em 2018, as vendas para Pessoa Física representavam
64,4% do total vendido. No ano passado, essa proporção caiu para 47,1%, segundo
dados da Jato Dynamics.
Carro
'popular'?
Kalume Neto nota, porém, que
se a proposta do "carro popular" for adiante, esse veículo em nada se
assemelha ao "carro pelado" da década de 90, ou seja, veículos sem
encosto de cabeça ou até retrovisor direito como itens de série, lembra ele.
Ele nota que a indústria
evoluiu, focando em veículos de maior valor agregado, e o consumidor se tornou
também mais exigente.
Apesar disso, acredita haver
espaço para um “modelo de entrada” mais barato.
"Estamos com vendas
estagnadas em torno de 2 milhões há três anos. E temos uma capacidade produtiva
acima de 4,5 milhões. O setor precisa vender mais. Mas não compartilho com a
ideia de "carro popular". Prefiro "carro de entrada", em
função dos preços praticados aqui no Brasil. Além disso, esse termo,
"carro popular", remete àquele carro "pelado" da década de
90, e isso já não faz mais parte da nossa realidade, até por uma questão da
legislação", explica.
"Mas, de fato,
considero que há espaço para uma redução de preços, de cerca de R$ 10
mil", acrescenta.
No entanto, ele diz
acreditar que para que o valor de venda seja reduzido a esse patamar, o
equipamento tecnológico teria que ser parcialmente sacrificado.
Kalume Neto questiona também
a viabilidade da produção de um veículo mais barato apenas movido a etanol.
“Isso implica em uma mudança
significativa na linha de montagem, dada a predominância dos motores flex. Essa
adaptação (para a fabricação de motores apenas movidos a etanol) certamente
encareceria o custo final”, assinala.
Contatado pela BBC News
Brasil, o MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços)
afirmou que "a proposta foi apresentada pela Anfavea (Associação Nacional
dos Fabricantes de Veículos Automotores) e ainda não chegou ao Ministério.
Ainda vamos abrir processo de diálogo para entender os detalhes do que está
sendo proposto e avaliar sua viabilidade".
Por sua vez, a Anfavea
afirmou, por meio de um porta-voz, que "são diálogos preliminares. A
formatação do programa ainda vai depender de muita conversa interna na Anfavea
e depois com as autoridades competentes".