“Ele se foi”, murmura a
veterinária Gabby Drake, do zoológico de Chester (Inglaterra), enquanto segura
o estetoscópio junto ao peito de um papagaio vermelho de 28 anos.
O pássaro é um
lóris-amor-amor (Lorius garrulus), um idoso residente no zoológico de Chester e
uma espécie listada pela União Internacional para a Conservação da Natureza
(IUCN) como vulnerável à extinção.
É triste ver uma ave cheia
de personalidade como essa ter que ser "colocada para dormir”. Seus pés pequenos
e com garras estão retorcidos com artrite, que atingiu um estágio grave demais
para ser tratada.
Mas não será o fim para o
código genético único contido em suas células. Alguns pequenos fragmentos de
seu corpo se juntarão a amostras de outras 100 espécies que serão congeladas e
armazenadas por tempo indefinido no maior biobanco de tecidos vivos do Reino
Unido, o Nature's Safe.
Em frascos com um
anticongelante rico em nutrientes e acolhedor para as células, as amostras são
mantidas a -196°C, ponto em que todos os processos químicos naturais nas
células param.
A ideia é que, em algum
momento no futuro, em décadas, talvez até séculos, eles possam ser
ressuscitados. É uma espécie de "backup congelado" em caso de
extinção.
A vida recomeça
Conservacionistas dizem que
neste momento estamos perdendo espécies mais rápido do que nunca. Em meio a uma
crise de biodiversidade que, segundo estimativas da ONU, ameaça 1 milhão de
espécies de plantas e animais de extinção, alguns cientistas trabalham
selecionando o que entra no freezer que guardará amostras para o futuro.
"Isso não vai parar a
extinção, mas certamente vai ajudar [em alguma medida a atenuar os efeitos
negativos]", diz Tullis Matson, fundador da Nature's Safe. Ele é um
entusiasta da missão da instituição sem fins lucrativos: preservar tecidos
vivos de animais silvestres.
"É aqui que a vida
começa de novo", ele sorri, enquanto exibe a imagem de um frasco de
células de pele de guepardo sob o microscópio.
O monitor está repleto de
células epidérmicas densamente compactadas, um dos blocos de construção de um
organismo. O ponto preto no meio de cada célula é um núcleo, contendo um
conjunto único de instruções genéticas que fizeram, neste caso, um guepardo.
“Este animal morreu em
2019”, explica Matson. "'Acordamos' essas células há alguns dias. E - você
pode ver agora - elas estão por toda a tela. Elas se multiplicaram e se
multiplicaram."
As células da pele são muito
úteis para essa estratégia, particularmente um tipo de célula do tecido
conjuntivo chamado fibroblasto. Estas são críticas para a cura e reparo e,
depois de serem removidas do freezer e aquecidas à temperatura corporal em um
banho de nutrientes, se dividirão e se multiplicarão em um recipiente.
Um dos possíveis usos
futuros para essas células que vêm de DNA congelado é a clonagem de novos
animais.
A clonagem de animais não é
nova. Em 1996, cientistas na Escócia clonaram a ovelha Dolly fundindo uma
célula de uma ovelha com o óvulo de outra. É tecnologia reprodutiva, nascida no
reino dos animais domésticos e agora sendo canalizada para a conservação.
A empresa de biotecnologia
americana Revive and Restore produziu recentemente um clone usando células da
pele de um furão de patas negras ameaçado de extinção que estava morto havia
décadas. Seus óvulos foram congelados em 1988.
A fusão de um fibroblasto de
furão com um óvulo produziu um embrião, e um clone – Elizabeth Ann, a furão de
patas negras – nasceu em dezembro de 2020.
Eles usaram a mesma
abordagem básica para clonar um cavalo de Przewalski - uma espécie considerada
o último cavalo vivo verdadeiramente "selvagem" - a um custo de US$
60 mil (cerca de R$ 300 mil). O clone, chamado Kurt, vive no Zoológico de San
Diego, nos EUA.
“Na verdade, era mais barato
para o zoológico clonar um cavalo – para trazer mais diversidade genética para
a população americana da espécie – do que seria enviar um cavalo de um
zoológico europeu”, explica o cientista-chefe da Revive and Restore, Ben Novak.
Quais espécies deveríamos
congelar?
Diversidade genética
importa. À medida que a população de uma espécie diminui, isso pode levar à
endogamia. Nos mamíferos, os descendentes têm um conjunto de instruções
genéticas de cada progenitor biológico. E se esses pais são parentes, que é o
caso da endogamia, quaisquer doenças genéticas que eles tenham são muito mais
propensas a serem transmitidas.
Banco de células, porém, não
é a maneira mais barata de ressuscitar genes, diz Novak.
"Os conservacionistas
estão lutando para salvar as espécies, mas não conseguimos salvar tudo - a
destruição está em andamento. Sair na frente e colocar as coisas no banco nos
dá a oportunidade no futuro de fazer a restauração", diz ele. "Se não
fizermos isso, vamos nos arrepender mais tarde."
Há temores, por exemplo, de
que o biobanco transmita uma mensagem de que não precisamos nos preocupar em
salvar espécies agora "porque podemos congelá-las para mais tarde",
afirma o professor Bill Sutherland, biólogo conservacionista da Universidade de
Cambridge, no Reino Unido.
"E há a questão de
priorizar o que está armazenado", diz. "Seria maravilhoso conseguir
tecido de 20 leopardos-das-neves de 20 locais diferentes, mas seria muito
difícil."
Em vez disso, a Nature's
Safe trabalha em estreita colaboração com os zoológicos da Europa, em
particular o zoológico de Chester.
Sempre que um animal tem que
ser "colocado para dormir” ou morre inesperadamente, os veterinários do
zoológico levam alguns tecidos para o banco.
"É como um raio de
Sol", diz Tullis. “Esse animal morrendo, na verdade, dá um pouco de
esperança para o futuro dessa espécie, porque podemos congelar essa genética”.
Embora colocar no banco o
que está disponível não seja uma abordagem perfeita, ela forneceu à Nature's
Safe amostras de espécies como o sapo-da-montanha, um anfíbio criticamente
ameaçado quase exterminado por uma doença fúngica, ou a pega-verde-de-Java, uma
ave levada à beira da extinção pelo comércio ilegal de aves silvestres. (Alguns
pássaros absurdamente belos têm habilidades de mímica notáveis e acabam sendo
também por isso muito procurados).
A cientista-chefe do
zoológico de Chester, Sue Walker, diz que se trata de salvar o máximo de
material genético possível. “Se não fizermos isso quando o animal morrer,
acabamos de perdê-lo”, diz ela.
No início deste ano, em
Chester, Goshi, uma jaguar de nove anos, foi encontrada morta. A veterinária
Gabby Drake cuidadosamente cortou a orelha esquerda do grande felino, colocou-a
em uma embalagem fria e a colocou no Nature's Safe, antes de enviar Goshi para
uma autópsia.
“Os jaguares não são os
grandes felinos mais ameaçados, mas estão em declínio e enfrentam as mesmas
pressões humanas que outros grandes predadores”, diz Drake. "Ela era um
animal muito jovem e nunca teve filhotes, infelizmente. É triste, mas é bom
saber que seu tecido continuará vivo."
Agora, alguns pedaços do
tamanho de ervilhas da orelha preta e aveludada de Goshi, limpos, preparados e
banhados em uma solução nutritiva protetora, estão em um repositório cada vez
mais biodiverso de nitrogênio líquido.
Tullis está otimista sobre o
que a ciência pode ser possível no futuro. "Com a tecnologia de edição de
genes, podemos até ser capazes de criar uma nova diversidade genética",
especula.
Olhando para o agora
solitário jaguar macho patrulhando sua área, Sue Walker, do zoológico de
Chester, diz que pode levar "décadas até que tenhamos a tecnologia para
fazer o que queremos com essas amostras".
A esperança dela, e da
maioria dos conservacionistas, é que o uso de células congeladas de animais
mortos há muito tempo nunca seja necessário.
"Mas, se não a
coletarmos, essa genética será perdida para sempre", diz Walker.
"Perdemos toda essa biodiversidade única."