A escritora Renata Formoso
confessa que sentiu um alívio ao saber que seu filho Noah, que hoje tem sete
anos, é autista.
“É óbvio que eu não desejava
que ele tivesse o transtorno. Mas receber a confirmação desse fato funcionou
como uma lanterna. Naquele momento, eu finalmente soube que teria uma luz para
nos ajudar a trilhar esse caminho”, relata.
Renata vive em Londres, no
Reino Unido, e diz que nunca havia reparado algo atípico no comportamento ou na
forma com que Noah interage com o mundo.
“Ele sempre foi uma criança
muito falante e não teve nenhum atraso no desenvolvimento. Porém, quando Noah
tinha três anos e meio, a professora da creche veio conversar com a gente e nos
orientou a procurar um neuropediatra”, conta.
Mas daí veio a pandemia de
covid-19, e os planos de passar por uma avaliação médica tiveram que ser
postergados por praticamente dois anos.
“Nesse período, eu comecei a
ler bastante sobre autismo. Também passei a perceber vários sinais, como o fato
de meu filho cantar bastante, como se toda a brincadeira precisasse de uma
trilha sonora”, detalha.
Aos cinco anos, o menino
finalmente conseguiu passar com o neuropediatra, que confirmou “oficialmente” o
diagnóstico de autismo e garantiu aquela sensação de conforto citada por
Renata.
“Foi um grande alívio entender
que o Noah tem certos limites que precisam ser respeitados por nós, como mãe e
pai, pelos familiares e pela comunidade. Percebi que todos passaram a ser mais
pacientes — e isso não modificou em nada a criança maravilhosa que ele sempre
foi.”
Embora cada paciente seja
único e tenha as suas particularidades, a história de Noah está longe de ser
única: todos os dias, diversas crianças são diagnosticadas com autismo em todo
o mundo.
E os números mostram que a
detecção desse transtorno do desenvolvimento, marcado por dificuldades de
comunicação, comportamentos repetitivos e interesses restritos, está em franco
crescimento.
Uma pesquisa recém-publicada
pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos revela
que 1 a cada 36 crianças americanas com menos de 8 anos têm autismo.
Este trabalho, que é repetido
a cada dois anos, revela uma tendência sólida de aumento nos casos: na edição
anterior do levantamento, a taxa estava em 1 caso a cada 44 meninos e meninas.
Para ter ideia, no ano 2000, a
prevalência era de 1 em 150 — e nos estudos preliminares da área, realizados
ainda nos anos 1960, esse número era estimado em 1 a cada 2,5 mil.
Mas, afinal, por que o
diagnóstico de casos de autismo cresce tanto? Embora não existam respostas
definitivas para essa pergunta, especialistas suspeitam que a maior
conscientização sobre o tema seja a principal explicação para o fenômeno.
O que diz a pesquisa
O artigo do CDC avalia os
diagnósticos de autismo em diversos centros de saúde, espalhados por 11 Estados
americanos.
Os dados mais recentes apontam
uma prevalência de 27,6 casos do transtorno a cada mil crianças de até oito
anos (o que permite chegar à proporção de 1 para 36).
O trabalho ainda mostra que o
autismo é 3,8 vezes mais frequente em meninos — cerca de 4% deles têm a
condição.
Porém, as estatísticas também
estão subindo entre o público feminino. Este foi o primeiro ano em que a
porcentagem de meninas com autismo superou a casa de 1%.
Outro ineditismo observado no
levantamento deste ano tem a ver com a raça: a prevalência do transtorno foi
mais baixa em brancos quando comparada a de outros grupos, como negros e
hispânicos, uma reversão da tendência histórica.
E essa não é a única evidência
que aponta para uma ascensão dos diagnósticos de autismo: pesquisadores da
Universidade de Newcastle, no Reino Unido, estimaram em 2021 que 1 a cada 57
crianças britânicas tem o quadro, número que é significativamente maior ao
registrado anteriormente nos país.
Infelizmente, não existem
estatísticas oficiais ou trabalhos epidemiológicos do tipo realizados no
Brasil.
“Estudos como o do CDC são
muito importantes para pensarmos em políticas públicas específicas para esses
indivíduos”, analisa a neuropsicóloga Joana Portolese, coordenadora do Programa
de Transtornos do Espectro Autista do Instituto de Psiquiatria (IPq) do
Hospital das Clínicas de São Paulo.
O que causa o autismo?
O autismo está naquele grupo
de doenças cuja origem é complexa e multifacetada.
Entre os especialistas, não há
dúvidas de que a genética tem influência nesse quadro.
“Mas não existe um único gene
responsável pelo autismo. São alterações em diferentes trechos do DNA que podem
levar ao desenvolvimento do transtorno”, pontua Portolese.
Mas as mudanças no genoma não
são capazes de explicar 100% dos casos. É aí que entram os fatores ambientais,
principalmente aqueles que acontecem durante os nove meses de gestação.
Por exemplo: filhos de pais ou
mães mais velhos, que já passaram dos 35 anos de idade no momento da concepção,
têm um risco maior de apresentar o distúrbio.
“Além disso, questões como
estresse, sobrepeso, diabetes gestacional e hipertensão durante a gravidez são
outros fatores de risco”, acrescenta a especialista do IPq.
Portolese lembra que autismo
não é algo que se adquire: a pessoa já nasce com o transtorno e, desde os
primeiros meses de vida, apresenta padrões que podem levantar a suspeita e a
necessidade de uma avaliação médica.
“A forma como o olhar se
estabelece, a compreensão do mundo social, de entender o que a mãe e as pessoas
ao redor estão querendo dizer, a expressão dos sentimentos… Tudo isso pode ser
diferente”, descreve.
Janelas preciosas
Notar esses sinais
precocemente, aliás, é estratégico, apontam os especialistas ouvidos pela BBC
News Brasil.
“Existem janelas do
desenvolvimento neurológico que podemos aproveitar. A primeira delas vai até os
dois anos de idade”, cita o psiquiatra Daniel Minahim, diretor clínico da
Associação Vozes Atípicas (AVA).
“Se a intervenção acontece de
forma precoce, dentro desses períodos, o resultado é ainda mais positivo”,
complementa.
Portanto, ficar atento aos
sintomas e, caso seja necessário, marcar uma consulta com um especialista logo
na primeira infância é muito importante.
“De forma resumida, o autismo
se apoia num tripé de sintomas. Primeiro, os distúrbios relacionados à
comunicação e à fala. Segundo, os comportamentos repetitivos. Terceiro, os
interesses restritos, em que o indivíduo foca muito em apenas uma ou poucas
coisas bem específicas”, informa Minahim.
“Os autistas gostam de outras
pessoas, têm sentimentos e querem interagir”, esclarece Portolese.
“A grande questão é que,
justamente pela dificuldade de comunicação social, muitas vezes eles ficam
focados nas coisas que os interessam, porque é difícil de entender as sutilezas
do subliminar”, complementa ela.
Não existem exames específicos
para detectar o transtorno. Os profissionais de saúde recorrem a alguns
questionários validados cientificamente. Eles também fazem uma série de
perguntas para investigar o caso em seus mínimos detalhes antes de chegar a
qualquer conclusão.
A idade em que ocorre o
diagnóstico, inclusive, é algo que precisa ser melhorado: no levantamento do
CDC, o transtorno costuma ser descoberto aos 48 meses (ou quatro anos de vida).
O ideal, de acordo com
diretrizes internacionais, é que a conclusão de que a criança tem autismo
aconteça um pouquinho antes, a partir dos 36 meses (ou três anos) — justamente
para aproveitar as tais janelas de oportunidade de intervenção no
desenvolvimento neurológico.
Isso, claro, não significa que
o diagnóstico tardio do autismo é um desperdício: ao descobrir o transtorno em
qualquer faixa etária (mesmo na adolescência ou na fase adulta), a pessoa pode
buscar uma melhor compreensão sobre si e iniciar tratamentos para aliviar
sintomas específicos ou dificuldades que prejudicam o bem-estar e a qualidade
de vida.
Informação e conscientização
Mas afinal, o que explica esse
aumento de diagnósticos nas últimas décadas?
“Quando vemos curvas
ascendentes de casos, como no autismo, sempre ficamos com uma pulga atrás da
orelha: será que existe algum fator biológico por trás disso?”, questiona
Minahim.
“Mas precisamos ter cuidado
com teorias da conspiração ou informações falsas. Não há nenhum fator ambiental
que tenha se modificado recentemente e que sirva de explicação para esse
aumento”, continua o psiquiatra.
“O que vemos de mudança, na
verdade, é uma maior conscientização sobre o autismo, com a disseminação de
mais informações tanto entre os profissionais da saúde quanto entre a
população”, completa.
“Essas estatísticas
possivelmente refletem as melhorias na triagem, na conscientização e até no
acesso aos serviços de saúde pelas populações minoritárias”, concorda Portolese.
Ou seja: como as pessoas estão
mais informadas sobre o transtorno, elas ficam atentas e buscam ajuda caso
percebam os sintomas em si mesmas ou em familiares próximos.
Para o neurologista pediátrico
Carlos Takeuchi, assessor científico do Instituto Pensi - Pesquisa e Ensino em
Saúde Infantil, em São Paulo, pesquisas futuras precisam investigar melhor esse
aumento nos diagnósticos.
“Pode ser que existam fatores
genéticos e ambientais envolvidos nisso”, opina.
Takeuchi, que também é
coordenador do Serviço de Neurologia do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo,
reforça a necessidade de iniciar o tratamento o quanto antes — e sempre com o
auxílio de vários profissionais.
“O paciente geralmente precisa
de terapia comportamental, com análises aplicadas aos comportamentos que ele
apresenta”, detalha.
“Também pode ser necessário
fazer fonoaudiologia, terapia ocupacional, ter suporte escolar…”, complementa.
Em alguns casos, os médicos
ainda prescrevem remédios que ajudam a lidar melhor com sintomas específicos
(como insônia ou dificuldade de concentração, por exemplo).
Em outras palavras, não existe
uma receita única, ou um tratamento que sirva para todos os autistas. A
depender do grau de comprometimento e dos sintomas, o indivíduo pode precisar
mais de uma terapia ou de outra.
Aprendizados da prática
Cerca de dois anos após o
diagnóstico de Noah, Renata reflete sobre algumas coisas que gostaria de dizer
para todas as famílias que recebem uma notícia parecida.
“Certa vez, ouvi uma frase que
me marcou: quando você conhece uma criança autista, você só conhece uma criança
autista”, diz.
“O espectro do autismo é muito
amplo e cada indivíduo, cada família, vai ter uma maneira diferente de lidar
com o mundo.”
Renata também aprendeu aos
poucos com outros pacientes e pelas redes sociais a evitar certos termos, que
podem reforçar estigmas ou incomodar os portadores do transtorno.
“Não existe autismo leve,
moderado ou grave. No Brasil, temos os níveis um, dois e três de suporte, de
acordo com a necessidade de intervenção e apoio que a pessoa precisa”, ensina.
“Frases como ‘Nossa, mas ele
não tem cara de autista’ ou ‘Ele é um anjo azul’ também não ajudam. O autismo
não tem cara, e não podemos infantilizar a luta de pessoas que só querem ser
incluídas, ir à escola, arrumar um emprego e fazer as atividades diárias”,
destaca a escritora.
Por fim, Renata entende que a
aceitação do diagnóstico pelas famílias é sempre o melhor caminho.
“Aceitar que seu filho tem
autismo pode abrir um caminho maravilhoso para que a criança possa finalmente
ser quem ela é”, conclui.