OAB reconheceu como petição
carta escrita por Esperança em 1770
Negra, escrava, jovem, mãe de
dois filhos e apartada do marido no interior do Piauí. Este é o perfil da
primeira mulher a praticar advocacia no país, ainda no século 18, conforme
oficializado em dezembro pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB).
Neste mês, o reconhecimento culminou
com a instalação de um busto em homenagem a Esperança Garcia na sede nacional
da OAB, em Brasília. O ato simbólico marcou a conclusão de décadas de resgate
histórico, mas também resulta de uma luta política de advogados negros, destaca
a jurista Vera Lúcia Araújo.
“Verifica-se um resgate
histórico, mas esse processo se deve também a uma ação política da advocacia,
de negras e negros, nesta situação especialmente, não é uma coisa que vem de
uma hora para outra”, afirma a advogada, que é integrante da Comissão de
Direitos Humanos da OAB nacional.
A expectativa é que a
conquista simbólica, contudo, seja prenúncio de medidas mais efetivas para
aumentar a presença de negros no mundo jurídico, diz Vera Lúcia. “Para nós, é
extremamente estimulante e gratificante ver essa consagração. Agora, a gente
não pode ficar só no simbólico, é preciso ter uma materialização dessa luta.”
Para Vera Lúcia, o caminho a
trilhar começa na própria OAB. Apesar do crescente número de advogados negros,
por exemplo, há hoje no Conselho Federal da entidade apenas uma conselheira
negra, entre os 81 membros titulares do colegiado.
Segundo a jurista, a OAB
deveria garantir o cumprimento das cotas para a eleição de seus conselheiros,
ou para a escolha dos diretores do Conselho Federal, que nunca foi presidido
por uma pessoa negra. Em outro flanco, a OAB também poderia “usar do poder
representativo da advocacia brasileira e se posicionar em defesa de um jurista
negro na composição do Supremo Tribunal Federal”, diz a advogada.
Primeira petição
No documento, Esperança rogava
providências contra os abusos cometidos por seu administrador, o capitão de
ordenança Antônio Vieira do Couto, que a submetia e a seus filhos pequenos a
maus-tratos físicos, além de proibir os escravos da fazenda Poções de se
confessar e batizar seus descendentes.
“A primeira é que há grandes
trovoadas de pancadas em um filho meu, sendo uma criança que lhe fez extrair
sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas,
tanto que caí uma vez do sobrado abaixo; por misericórdia de Deus, escapei. A
segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma
criança minha e duas mais por batizar”, escreveu Esperança.
Ela, provavelmente, aprendeu a
ler e escrever com os jesuítas que passaram pelo Piauí no século 18. Daí supõe-se
que venham também suas noções de direito, pois, mesmo ciente de sua condição
precária como escrava, ela demonstrou saber que a submissão à coroa portuguesa
e à Igreja Católica implicava certas prerrogativas mínimas, como a necessidade
de se confessar e de batizar os filhos.
“Ciente do seu mundo e dos
limites que sua condição de escrava podia propiciar, Esperança Garcia utilizou
a estratégia dos conquistadores para defender os seus direitos, angariar
vantagens e, com isso, (re)planejar seu destino perto dos seus filhos e do seu
marido”, diz o Dossiê Esperança Garcia, produzido entre os anos de 2016 e 2018
por uma comissão de juristas e historiadores.
Aliado a outros registros da
época, de pessoas que intercederam na causa pleiteada por Esperança, o documento
foi reconhecido pela Seccional da OAB do Piauí como uma petição jurídica, por
trazer todos os elementos necessários: endereçamento, identificação, narrativa
dos fatos, fundamento no direito e pedido. Isso levou a escrava a receber o
título de primeira advogada do estado, em 2017.
Foram cinco anos de campanha
até que o Conselho Federal da OAB aprovasse o reconhecimento do documento
escrito em 1770 como uma petição, e de Esperança Garcia como primeira advogada
do Brasil, em dezembro do ano passado. Antes, o posto era ocupado por Myrthe
Gomes, que ingressou na advocacia mais de 100 anos depois, em 1899.